segunda-feira, 18 de maio de 2009

No bar, ainda vazio, a banda solta acordes em dissonância testando equipamento e sonoridade.Daniel em pé, agarrado ao microfone olha para o nada, distraído.Os cabelos cacheados em desalinho lhe caem no rosto claro e de traços fortes. Os braços tatuados se alongam rumo às mãos de dedos finos e cheios de anéis de prata. Os garçons arrumam as mesas, conferindo sua numeração, cadeiras e copos, fazendo estalar o piso de madeira.No bar uma moça alta, negra e visivelmente irritada fala ao celular.A guitarra geme gentilmente as notas de uma canção de George Harrison. Daniel observa o afinamento das cordas e a montagem da bateria enquanto tenta memorizar o set list.A produtora chega atrasada, apressada e nervosa; carregada de listas de convidados, figurinos de cena, dois celulares, a chave do carro que insiste em cair e uma filha adolescente mal humorada. Daniel desce, senta com elas à mesa em frente ao palco e eles conversam entre cigarros e copos. A adolescente, depois que o vocalista sentou perto dela, parece mais animada.O bar começa a ficar cheio e os músicos descem do palco.Daniel olha o relógio, pega o figurino e vai para o camarim trocar de roupa.O burburinho, lentamente, aumenta consideravelmente até dificultar qualquer conversa.Aos 28 anos, Daniel Malozzi é o vocalista da Companhia Filarmônica, uma banda que apresenta um repertório exclusivamente composto por canções dos Beatles. Quando entrou para a banda, tinha 21 anos e pouca experiência em apresentações solo. Ele conta, rindo, que houve vezes em que o nervosismo era tanto, que ele chegou a cantar de costas para a platéia.O dinheiro é pouco, mas há a enorme satisfação pessoal, que chega a ofuscar a realidade de músicos aspirantes ao sucesso, que se contentam com os aplausos esquecendo a importância de uma parte vital do ofício: o cachê.Há os shows fechados para grandes empresas, que pagam muito bem; mas a maioria das apresentações é feita na base da renda da bilheteria, de onde se tira o percentual preestabelecido para a casa de shows e com o restante se paga os músicos e produtores.Daniel conta que já sonhou com a fama em grande escala, mas aos poucos foi desistindo de audições e testes deixando a carreira toda por conta das apresentações da Filarmônica. As luzes se apagam, o palco se ilumina e três violinos executam a introdução de Eleanor Rigby. O público silencia e Daniel dá um passo à frente e, com o microfone entre as mãos, canta:All the lonely people, where do the all come from?All the lonely people, why do they all belong?Como diz Calderón de La Barca: a vida é sonho